Acidente vascular cerebral criptogênico e PFO: há relação causal?

 Acidente vascular cerebral criptogênico e PFO: há relação causal?


O acidente vascular cerebral (AVC) criptogênico, definido como um AVC isquêmico sem causa identificável após investigação extensiva, representa aproximadamente 25-40% dos casos de AVC isquêmico, com maior prevalência em adultos jovens (<55 anos). O forame oval patente (FOP), uma comunicação interatrial presente em 20-25% da população geral, tem sido investigado como um potencial fator causal em AVC criptogênico devido à possibilidade de embolia paradoxal, onde trombos venosos atravessam o FOP, alcançando a circulação arterial cerebral. Apesar da associação estatística entre FOP e AVC criptogênico, a relação causal permanece controversa, exigindo uma análise crítica das evidências. 

Epidemiologia e Contexto Clínico

O AVC criptogênico é uma categoria diagnóstica de exclusão, aplicada quando investigações, incluindo neuroimagem, ecocardiograma, monitoramento de arritmias e testes de trombofilia, não identificam uma causa específica, como aterosclerose, cardioembolia (ex.: fibrilação atrial) ou lacunas de pequenos vasos. A incidência de AVC criptogênico é estimada em 30-60 casos por 100.000 habitantes, com maior proporção em indivíduos <55 anos, segundo estudo de 2020. No Brasil, dados do Registro Brasileiro de Doenças Cerebrovasculares (2022) indicam que 30% dos AVCs isquêmicos em jovens são classificados como criptogênicos.

O FOP, um remanescente embriológico que permite comunicação entre os átrios direito e esquerdo, é mais prevalente em pacientes com AVC criptogênico (40-50%) do que na população geral (20-25%), conforme meta-análise de 2021. Essa associação é mais forte em jovens, com odds ratio de 2,5-3,5 para AVC em indivíduos com FOP. No entanto, a presença de FOP não implica causalidade, pois a maioria dos portadores nunca desenvolve AVC.

Mecanismos Fisiopatológicos

A principal hipótese para a relação entre FOP e AVC criptogênico é a embolia paradoxal, onde trombos originados no sistema venoso (ex.: trombose venosa profunda) atravessam o FOP, embolizando para a circulação cerebral. Esse mecanismo é plausível em pacientes com trombofilias ou estados pró-trombóticos, como gravidez ou uso de contraceptivos orais. Um estudo de 2020 mostrou que 10-15% dos pacientes com AVC criptogênico e FOP apresentavam evidências de tromboembolismo venoso concomitante.

Outros mecanismos propostos incluem:

Trombose in situ: O FOP pode abrigar trombos locais devido a estase ou turbulência de fluxo, embora isso seja raro.
Arritmias atriais transitórias: O FOP pode predispor a microarritmias, aumentando o risco de tromboformação atrial.
Associação com aneurisma de septo atrial (ASA): A presença de ASA, observada em 10% dos casos de FOP, aumenta a mobilidade do septo, facilitando a passagem de êmbolos.

Apesar dessas hipóteses, a causalidade direta é questionada, pois muitos casos de AVC criptogênico em portadores de FOP podem ser atribuídos a causas não detectadas, como fibrilação atrial paroxística ou aterosclerose oculta. Um estudo de 2022 revelou que monitoramento prolongado com Holter de 30 dias identificou FA em 15% dos casos inicialmente classificados como criptogênicos.

Fatores de Risco

Os fatores de risco para AVC criptogênico em pacientes com FOP incluem:

Idade jovem: A associação é mais forte em indivíduos <55 anos, com risco relativo de 3-4.
Trombofilias: Fator V Leiden, mutação G20210A da protrombina e síndrome antifosfolípide aumentam o risco de embolia paradoxal em 2-5 vezes.
Condições pró-trombóticas: Gravidez, puerpério e uso de contraceptivos orais elevam o risco em mulheres com FOP.
Características do FOP: FOPs com shunt significativo (>20 microbolhas no ecocardiograma transesofágico) ou associados a ASA têm maior risco.

Um estudo brasileiro de 2023 mostrou que 20% dos pacientes com AVC criptogênico e FOP apresentavam trombofilias, com 60% sendo mulheres jovens em uso de contraceptivos.

Diagnóstico

O diagnóstico da relação entre FOP e AVC criptogênico envolve:

Neuroimagem: Tomografia computadorizada (TC) ou ressonância magnética (RM) com difusão confirma o AVC isquêmico, enquanto angio-TC ou angio-RM descarta oclusões de grandes vasos.
Ecocardiograma transesofágico (ETE): Método padrão para detectar FOP, com sensibilidade de 95%. O teste de bolhas com contraste identifica shunts direito-esquerdo.
Monitoramento de arritmias: Holter de 24-72 horas ou monitores implantáveis descartam FA paroxística.
Testes de trombofilia: Avaliação de fator V Leiden, mutação da protrombina e anticorpos antifosfolípides em pacientes jovens ou com história de tromboembolismo.
Escores de risco: O RoPE score (Risk of Paradoxical Embolism) estima a probabilidade de FOP como causa do AVC, considerando idade, ausência de fatores de risco tradicionais e características do FOP.

Um estudo de 2021 demonstrou que o ETE identificou FOP em 45% dos pacientes com AVC criptogênico <55 anos, mas apenas 20% tinham RoPE score ≥7, sugerindo causalidade provável.

Manejo Clínico

O manejo do AVC criptogênico com FOP é controverso, com três abordagens principais:

Terapia medicamentosa:
Antiplaquetários: Aspirina (100 mg/dia) é usada em pacientes com baixo risco de recorrência.
Anticoagulação: DOACs (ex.: rivaroxabana) ou varfarina são indicados em casos com trombofilia ou tromboembolismo venoso concomitante. O ensaio NAVIGATE-ESUS (2018) mostrou que rivaroxabana não foi superior à aspirina em AVC criptogênico geral, mas subanálises sugeriram benefício em pacientes com FOP.
Fechamento do FOP: O fechamento percutâneo com dispositivos (ex.: Amplatzer) reduz a recorrência de AVC em 50-60% em pacientes <60 anos com FOP de alto risco, conforme ensaios CLOSE (2017) e REDUCE (2017). O número necessário para tratar (NNT) é de 20-40 para prevenir um AVC em 5 anos.
Observação: Indicada em FOPs pequenos sem outros fatores de risco.

Diretrizes da AHA (2021) recomendam fechamento do FOP em pacientes <60 anos com AVC criptogênico, FOP de alto risco e ausência de outras causas. No Brasil, o fechamento é realizado em centros especializados, mas o acesso é limitado no SUS, com apenas 10% dos pacientes elegíveis tratados, segundo dados de 2022.

Desafios no Contexto Brasileiro

No Brasil, o manejo do AVC criptogênico com FOP enfrenta barreiras. A disponibilidade de ETE é restrita, com apenas 30% dos hospitais públicos equipados, segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (2022). O custo do fechamento do FOP (R$ 20.000-50.000) e de DOACs (R$ 200-300/mês) limita o acesso, forçando a dependência de aspirina ou varfarina, menos eficazes em alguns casos. A falta de neurologistas e cardiologistas em regiões como o Norte e Nordeste atrasa o diagnóstico, com média de 5-7 dias para ETE, segundo estudo de Recife (2023). A baixa alfabetização em saúde dificulta a adesão à terapia, com 25% dos pacientes interrompendo a medicação, conforme pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (2021).

Perspectivas Futuras

As perspectivas futuras incluem o uso de inteligência artificial (IA) para integrar dados de imagem, escores de risco e biomarcadores, como níveis de D-dímero, para confirmar a causalidade do FOP. Um estudo piloto no Brasil (2023) alcançou 88% de acurácia na previsão de AVC relacionado a FOP com IA. Monitores implantáveis de longo prazo podem detectar FA oculta, reduzindo a classificação errônea de AVC criptogênico. Ensaios como o DEFENSE-PFO estão avaliando o fechamento em populações mais amplas, enquanto novos anticoagulantes, como inibidores do fator XI, prometem menor risco hemorrágico. A ampliação do acesso a ETE e fechamento no SUS, por meio de parcerias público-privadas, é essencial.

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A relação entre AVC criptogênico e FOP é plausível, principalmente via embolia paradoxal, mas a causalidade não é universal, exigindo investigação detalhada para descartar outras causas. O FOP é mais prevalente em jovens com AVC criptogênico, e o fechamento percutâneo é eficaz em casos selecionados. No Brasil, barreiras como acesso limitado a exames e tratamentos desafiam o manejo, mas iniciativas como telemedicina e IA mostram promessa. Avanços em diagnósticos, terapias e políticas públicas podem esclarecer a relação causal e otimizar os desfechos, reduzindo a morbimortalidade associada ao AVC criptogênico.



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