Correlação entre níveis de FVIII e risco trombótico em mulheres usuárias de anticoncepcional
Correlação entre níveis de FVIII e risco trombótico em mulheres usuárias de anticoncepcional
O uso de anticoncepcionais orais combinados (COCs), que contêm estrogênio e progestágeno, é um fator de risco bem estabelecido para tromboembolismo venoso (TEV), incluindo trombose venosa profunda (TVP) e embolia pulmonar (EP), especialmente em mulheres com predisposições trombóticas. O fator VIII (FVIII), um componente essencial da cascata de coagulação, tem sido associado ao aumento do risco trombótico quando presente em níveis elevados. Mulheres usuárias de COCs frequentemente exibem alterações hemostáticas, incluindo aumento dos níveis de FVIII, que podem amplificar o estado pró-trombótico. A prevalência de TEV em usuárias de COCs é estimada em 3-9 casos por 10.000 mulheres-ano, significativamente maior que em não usuárias (1-5 por 10.000). Este texto analisa a correlação entre níveis elevados de FVIII e o risco trombótico em mulheres usuárias de COCs, os mecanismos subjacentes, os métodos de avaliação, os desafios no manejo clínico e as perspectivas futuras, com ênfase em evidências científicas e implicações no contexto brasileiro.
Mecanismos Fisiopatológicos
O FVIII é uma glicoproteína sintetizada no fígado que atua como cofator na ativação do fator X pela fator IXa, promovendo a formação de trombos. Níveis elevados de FVIII, definidos como >150% da atividade normal, estão associados a um estado pró-trombótico, aumentando o risco de TEV em 4-6 vezes, segundo uma meta-análise de 2020. Os COCs induzem alterações hemostáticas por meio do estrogênio, que estimula a síntese hepática de fatores de coagulação, incluindo FVIII, fibrinogênio e fator von Willebrand (vWF), enquanto reduz inibidores naturais, como proteína S. Um estudo de 2021 demonstrou que mulheres usuárias de COCs apresentavam níveis de FVIII 20-30% mais altos após 3 meses de uso, com maior efeito em formulações com doses mais altas de etinilestradiol (>30 µg).
O aumento do FVIII é mediado pela ativação de vias inflamatórias e pela elevação do vWF, que estabiliza o FVIII no plasma. A inflamação crônica leve induzida pelos COCs, caracterizada por níveis elevados de proteína C-reativa (PCR), amplifica esse efeito. Além disso, polimorfismos genéticos, como variantes no gene F8 ou no grupo sanguíneo ABO (não-O, associado a maior vWF), podem potencializar os níveis de FVIII, aumentando o risco trombótico. Um estudo de 2022 revelou que mulheres com grupo sanguíneo A ou B apresentavam risco de TEV 2 vezes maior quando em uso de COCs, devido a níveis de FVIII e vWF mais elevados.
A interação entre COCs e trombofilias hereditárias, como fator V Leiden (FVL) ou mutação G20210A da protrombina, amplifica o risco. Mulheres heterozigotas para FVL em uso de COCs têm risco de TEV 30-35 vezes maior, com níveis elevados de FVIII contribuindo sinergicamente. Um estudo brasileiro de 2020 mostrou que 15% das mulheres com TEV associado a COCs apresentavam FVL, e 80% delas tinham FVIII >150%.
Prevalência e Impacto Clínico
A prevalência de níveis elevados de FVIII em usuárias de COCs varia de 20% a 40%, dependendo da formulação do anticoncepcional e da duração do uso. Formulações de terceira geração, contendo progestágenos como desogestrel, estão associadas a maior risco trombótico (odds ratio de 1,5-2) em comparação com levonorgestrel, devido a maior resistência à proteína C ativada e elevação do FVIII. Um estudo multicêntrico de 2021 relatou que mulheres usando COCs com desogestrel apresentavam FVIII 25% mais alto que aquelas com levonorgestrel após 6 meses.
O impacto clínico do aumento do FVIII é significativo. Mulheres com FVIII >150% têm risco de TEV 4-6 vezes maior, e a combinação com COCs eleva esse risco para 8-10 vezes. Eventos tromboembólicos arteriais, como infarto agudo do miocárdio (IAM) e acidente vascular cerebral (AVC), são menos comuns, mas podem ocorrer em mulheres com outros fatores de risco, como tabagismo ou hipertensão. Um estudo de 2023 mostrou que 5% das mulheres <45 anos com AVC isquêmico em uso de COCs apresentavam FVIII >200%, sugerindo um papel contributivo.
Métodos de Avaliação
A avaliação do risco trombótico em usuárias de COCs com níveis elevados de FVIII envolve anamnese, exames laboratoriais e escores de risco. A história clínica deve investigar:
Fatores de risco pessoais: Tabagismo, obesidade, história de trombose ou complicações obstétricas.
História familiar: TEV ou trombofilias hereditárias, indicando possível FVL ou mutação da protrombina.
Características do COC: Tipo de progestágeno, dose de estrogênio e duração do uso.
Os exames laboratoriais incluem:
Dosagem de FVIII: Medida por ensaios de coagulação funcional, expressa como porcentagem da atividade normal. Valores >150% são considerados elevados.
Fator von Willebrand: Avaliado por ensaios de antígeno ou atividade, pois níveis elevados (>150%) frequentemente acompanham o aumento do FVIII.
Testes de trombofilia: Genotipagem para FVL (rs6025) e mutação G20210A por PCR, além de testes funcionais para proteína C, S e antitrombina.
Marcadores inflamatórios: PCR e D-dímero, que podem indicar estado pró-trombótico.
A triagem universal de FVIII antes do início dos COCs não é recomendada devido ao baixo custo-benefício, mas é indicada em mulheres com história familiar de trombose ou TEV idiopático. Um estudo brasileiro de 2022 revelou que 20% das mulheres com TEV associado a COCs tinham FVIII >150% não detectado previamente, sugerindo que a triagem seletiva pode ser benéfica em populações de risco.
Desafios no Manejo
O manejo do risco trombótico em usuárias de COCs com níveis elevados de FVIII é complexo. A suspensão dos COCs é recomendada após um evento trombótico, com transição para métodos não hormonais, como dispositivos intrauterinos. Em mulheres com FVIII elevado, mas sem trombose prévia, a decisão de continuar os COCs depende da estratificação de risco. Diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS) contraindicam COCs em mulheres com trombofilias conhecidas, mas a ausência de diretrizes específicas para FVIII elevado gera incerteza clínica.
A anticoagulação profilática, como heparina de baixo peso molecular (HBPM, ex.: enoxaparina 40 mg/dia), é considerada em situações de alto risco, como imobilização ou cirurgia, mas não há consenso sobre seu uso profilático de longo prazo em usuárias de COCs. Um estudo de 2021 mostrou que a profilaxia com HBPM reduziu o risco de TEV em 60% em mulheres com FVL e COCs durante cirurgias, mas aumentou o risco de sangramento em 3%.
No Brasil, o manejo enfrenta barreiras. O acesso a testes de FVIII e trombofilia é limitado no Sistema Único de Saúde (SUS), com custos de R$ 500-1.500 por painel genético. A varfarina, disponível no SUS, é usada em casos de TEV, mas exige monitoramento frequente do INR, difícil em áreas rurais. Os anticoagulantes orais diretos (DOACs), como rivaroxabana, são eficazes, mas custam até R$ 300/mês, restringindo seu uso. Um estudo em hospitais públicos de São Paulo (2023) revelou que 30% das mulheres com TEV associado a COCs não receberam acompanhamento hematológico adequado devido a restrições logísticas.
Contexto Brasileiro
No Brasil, o uso de COCs é difundido, com 25% das mulheres em idade reprodutiva utilizando esses métodos, segundo o IBGE (2022). A prevalência de FVIII elevado é subestimada devido à falta de triagem sistemática. A diversidade genética, com menor incidência de FVL em afrodescendentes (<1%), exige maior atenção a outros fatores, como hiper-homocisteinemia e níveis de FVIII. Um programa piloto em Recife demonstrou que a capacitação de ginecologistas para identificar mulheres de alto risco aumentou a detecção de trombofilias em 20%, sugerindo que a educação médica é crucial.
Perspectivas Futuras
As perspectivas futuras incluem o desenvolvimento de biomarcadores mais específicos, como microRNAs ou níveis de trombomodulina, para prever o risco trombótico em usuárias de COCs. A inteligência artificial (IA) pode otimizar a estratificação de risco, integrando dados de FVIII, vWF e genéticos. Um estudo piloto no Brasil alcançou 88% de acurácia na previsão de TEV em usuárias de COCs usando IA. A incorporação de DOACs no SUS e o desenvolvimento de COCs com menor impacto hemostático, como formulações com estradiol natural, são prioridades. Campanhas de conscientização sobre riscos trombóticos e a criação de diretrizes nacionais podem melhorar o manejo.
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Níveis elevados de FVIII em mulheres usuárias de COCs estão fortemente correlacionados ao risco trombótico, especialmente TEV, devido a alterações hemostáticas induzidas pelo estrogênio. A prevalência de FVIII >150% varia de 20-40%, com risco amplificado por trombofilias e fatores genéticos. A triagem seletiva, com dosagem de FVIII e testes de trombofilia, é essencial em mulheres de alto risco, mas enfrenta barreiras no Brasil, como custo e acesso. O manejo requer suspensão de COCs em casos de trombose e profilaxia em situações de risco. Avanços em biomarcadores, IA e políticas públicas prometem aprimorar a prevenção e o tratamento, reduzindo a morbimortalidade associada ao TEV nessa população.
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