Exames de Enzimas hepáticas (TGO/AST, TGP/ALT, GGT, FA) para doenças hepáticas com manifestações neurológicas

 Exames de Enzimas hepáticas (TGO/AST, TGP/ALT, GGT, FA) para doenças hepáticas com manifestações neurológicas




As enzimas hepáticas, incluindo aspartato aminotransferase (TGO/AST), alanina aminotransferase (TGP/ALT), gama-glutamil transferase (GGT) e fosfatase alcalina (FA), são biomarcadores essenciais para avaliar a função e integridade do fígado. Alterações nesses marcadores estão associadas a doenças hepáticas que podem apresentar manifestações neurológicas, como encefalopatia hepática, doença de Wilson e hepatite viral aguda. Este estudo revisa as bases teóricas e práticas do uso dessas enzimas no diagnóstico e monitoramento de doenças hepáticas com impacto neurológico, abordando sua fisiologia, aplicações clínicas, limitações e relevância com base em evidências científicas recentes.

Fisiologia das Enzimas Hepáticas

As enzimas hepáticas refletem diferentes aspectos da função e lesão hepatocelular. A TGO/AST e a TGP/ALT são enzimas intracelulares liberadas na circulação quando há dano aos hepatócitos. A TGO é encontrada em vários tecidos (fígado, coração, músculos esqueléticos), enquanto a TGP é mais específica para o fígado. Valores normais variam entre 10-40 U/L para TGO e 7-56 U/L para TGP, dependendo do método laboratorial. A razão TGO/TGP é útil para diferenciar causas de lesão hepática: valores >2 sugerem hepatite alcoólica, enquanto <1 são típicos de hepatite viral.

A GGT, localizada na membrana dos hepatócitos e células do ducto biliar, está envolvida no metabolismo do glutationa. Seus níveis normais variam entre 9-85 U/L, e elevações indicam colestase, consumo crônico de álcool ou indução enzimática por medicamentos. A FA, presente no fígado, ossos e placenta, tem valores normais de 40-150 U/L. Elevações hepáticas de FA são comuns em doenças colestáticas, como cirrose biliar primária, e podem ser diferenciadas de origens ósseas por testes específicos, como isoenzimas.

Essas enzimas são cruciais para detectar lesões hepáticas que podem levar a complicações neurológicas, como acúmulo de amônia na encefalopatia hepática ou deposição de cobre no sistema nervoso central na doença de Wilson.

Doenças Hepáticas com Manifestações Neurológicas

Diversas condições hepáticas apresentam sintomas neurológicos, e os exames de enzimas hepáticas desempenham um papel central em sua investigação.

Encefalopatia Hepática

A encefalopatia hepática (EH) é uma complicação de doenças hepáticas agudas ou crônicas, como cirrose e hepatite fulminante, caracterizada por confusão mental, asterixis e, em casos graves, coma. É causada pelo acúmulo de toxinas, como amônia, devido à disfunção hepática e shunts portossistêmicos. Na EH, a TGO e a TGP podem estar moderadamente elevadas (100-500 U/L) em hepatites agudas ou normais em cirrose avançada, enquanto a GGT e a FA frequentemente aumentam em casos de colestase associada. Estudos, como o de Vilstrup et al. (2014), mostram que a gravidade da EH correlaciona-se mais com níveis de amônia e bilirrubina do que com enzimas hepáticas, mas a TGO e a TGP são úteis para monitorar a progressão da lesão hepática subjacente.

 Doença de Wilson

A doença de Wilson, uma desordem genética do metabolismo do cobre, causa acúmulo de cobre no fígado e cérebro, levando a sintomas neurológicos como tremores, rigidez e disartria. Alterações hepáticas geralmente precedem os sintomas neurológicos, com elevações leves a moderadas de TGO e TGP (50-200 U/L). A FA pode estar normal ou reduzida, um achado característico devido à inibição do cobre na síntese da enzima. A GGT é menos informativa, mas pode estar elevada em casos de hepatite crônica associada. A combinação de TGO/TGP elevada com FA baixa tem sensibilidade de cerca de 80% para suspeita de Wilson, conforme diretrizes da Associação Americana para o Estudo das Doenças Hepáticas (AASLD).

 Hepatites Virais

Hepatites virais agudas (A, B, C, E) podem causar encefalopatia em casos fulminantes, especialmente em gestantes (hepatite E). A TGO e a TGP estão marcadamente elevadas (>1000 U/L) na fase aguda, refletindo necrose hepatocelular. A GGT e a FA podem aumentar em casos com colestase. A resolução dos sintomas neurológicos geralmente acompanha a normalização das enzimas, mas a persistência de elevações sugere cronicidade ou complicações, como cirrose.

Outras Condições

Doenças como esteatohepatite não alcoólica (NASH) e hepatite autoimune podem evoluir com manifestações neurológicas leves, como fadiga cognitiva. Nessas condições, a TGP é frequentemente mais elevada que a TGO, e a GGT pode indicar esteatose avançada. A FA é útil para detectar colestase em hepatite autoimune com overlap com colangite esclerosante.

Aplicações Clínicas dos Exames

Os exames de enzimas hepáticas são usados para:

  1. Diagnóstico Inicial: Elevações de TGO e TGP sugerem lesão hepatocelular, enquanto aumentos de GGT e FA indicam colestase. Na suspeita de doenças com sintomas neurológicos, esses marcadores orientam a investigação de causas hepáticas versus neurológicas primárias.

  2. Monitoramento: Na EH, a normalização das enzimas pode indicar melhora da função hepática, enquanto na doença de Wilson, a redução de TGO/TGP reflete resposta à terapia quelante (D-penicilamina).

  3. Diferenciação de Causas: A razão TGO/TGP e os níveis de GGT/FA ajudam a distinguir hepatite alcoólica (TGO/TGP >2, GGT elevada) de viral (TGO/TGP <1) ou colestática (FA elevada).

Métodos de Dosagem

As enzimas hepáticas são dosadas por métodos enzimáticos automatizados, como espectrofotometria, que medem a atividade enzimática em unidades por litro (U/L). A padronização dos valores de referência é essencial, pois fatores como idade, sexo e etnia podem influenciar os resultados. Por exemplo, homens tendem a ter níveis de TGP ligeiramente mais altos. A coleta de sangue deve ser feita em jejum para evitar interferências, e medicamentos como estatinas ou anticonvulsivantes podem elevar falsamente os níveis.

Limitações dos Exames

As enzimas hepáticas têm limitações significativas. A TGO não é específica para o fígado, sendo elevada em lesões musculares ou cardíacas. A TGP, embora mais específica, pode estar normal em cirrose avançada devido à perda de massa hepatocelular. A GGT é sensível ao consumo de álcool e medicamentos, reduzindo sua especificidade. A FA pode ser elevada em doenças ósseas ou gravidez, exigindo testes complementares (como isoenzimas) para confirmar origem hepática. Além disso, as enzimas hepáticas não se correlacionam diretamente com a gravidade dos sintomas neurológicos, exigindo integração com outros exames, como níveis de amônia, ceruloplasmina (na doença de Wilson) ou imagem (tomografia, ressonância).

Relevância e Perspectivas

Os exames de TGO, TGP, GGT e FA são ferramentas fundamentais na triagem e manejo de doenças hepáticas com manifestações neurológicas. Sua acessibilidade e custo relativamente baixo os tornam indispensáveis, especialmente em contextos de recursos limitados. Na encefalopatia hepática, eles auxiliam na identificação da causa subjacente, enquanto na doença de Wilson, a combinação de TGO/TGP elevada e FA baixa é um achado diagnóstico crucial. Em hepatites virais, as enzimas orientam a decisão de iniciar terapia antiviral ou suporte intensivo.

Avanços recentes incluem o uso de biomarcadores mais específicos, como microRNAs hepáticos, que podem complementar as enzimas tradicionais. A inteligência artificial também está sendo aplicada para integrar dados de enzimas hepáticas com outros parâmetros, como bilirrubina e amônia, para prever desfechos neurológicos em pacientes com EH. Pesquisas futuras devem focar na validação de algoritmos diagnósticos que combinem enzimas hepáticas com testes de imagem e marcadores genéticos, aumentando a acurácia e personalizando o manejo.

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As enzimas hepáticas TGO, TGP, GGT e FA são pilares na avaliação de doenças hepáticas com manifestações neurológicas, oferecendo insights sobre a extensão da lesão hepática e orientando o diagnóstico diferencial. Apesar de suas limitações, como baixa especificidade e variabilidade interindividual, sua integração com outros exames e a interpretação contextualizada maximizam sua utilidade. A evolução tecnológica e a pesquisa de novos biomarcadores prometem aprimorar a detecção precoce e o monitoramento dessas condições, reduzindo a morbimortalidade associada. Estratégias que promovam o uso racional desses exames e a capacitação de profissionais são essenciais para otimizar os desfechos clínicos.

Referências

  • Vilstrup H, et al. Hepatic encephalopathy in chronic liver disease: 2014 practice guideline by AASLD and EASL. Hepatology. 2014;60(2):715-735.

  • Roberts LR, et al. Diagnosis and treatment of Wilson disease: an update. Hepatology. 2018;68(6):2360-2373.

  • Kwo PY, et al. ACG clinical guideline: evaluation of abnormal liver chemistries. Am J Gastroenterol. 2017;112(1):18-35.


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