Risco de TEV pós-COVID-19: evidências atuais

 Risco de TEV pós-COVID-19: evidências atuais



O tromboembolismo venoso (TEV), que engloba trombose venosa profunda (TVP) e embolia pulmonar (EP), emergiu como uma complicação significativa durante a infecção aguda por SARS-CoV-2, mas evidências recentes indicam que o risco persiste no período pós-COVID-19, especialmente em pacientes com infecção grave ou comorbidades. A COVID-19 induz um estado pró-trombótico caracterizado por inflamação sistêmica, disfunção endotelial e ativação da coagulação, que pode prolongar-se após a resolução da fase aguda. Este texto analisa as evidências atuais sobre o risco de TEV no período pós-COVID-19, os fatores de risco, os mecanismos subjacentes, as estratégias de manejo e os desafios no contexto clínico, com foco em dados epidemiológicos e implicações para a prática.

Epidemiologia e Magnitude do Risco

Estudos observacionais e meta-análises indicam que o risco de TEV permanece elevado por semanas a meses após a infecção por COVID-19, mesmo em pacientes que não requereram internação. Uma coorte sueca de 2022, com mais de 1 milhão de pacientes pós-COVID-19, revelou que o risco de TVP foi 5 vezes maior nos primeiros 3 meses após a infecção, enquanto o risco de EP foi 33 vezes maior, em comparação com controles sem COVID-19. O risco foi mais pronunciado em pacientes com infecção grave (internados em UTI), mas também esteve presente em casos leves, com um hazard ratio de 3,2 para TEV em pacientes ambulatoriais.

A incidência de TEV pós-COVID-19 varia conforme o contexto clínico. Em pacientes previamente internados, a taxa de TEV aos 6 meses pós-alta é estimada em 2-7%, enquanto em pacientes ambulatoriais é de 0,5-1%. Um estudo multicêntrico de 2023 relatou que 4% dos pacientes pós-COVID-19 desenvolveram TEV dentro de 90 dias, com maior prevalência em aqueles com D-dímero persistentemente elevado (>500 ng/mL) na alta hospitalar. Esses dados sugerem que o estado pró-trombótico não se resolve imediatamente após a recuperação clínica, exigindo vigilância prolongada.

Mecanismos Fisiopatológicos

O risco persistente de TEV pós-COVID-19 está relacionado à inflamação residual, disfunção endotelial crônica e alterações hemostáticas. Durante a fase aguda, a "tempestade de citocinas", com elevação de interleucina-6 (IL-6) e fator de necrose tumoral (TNF-α), ativa a coagulação por meio da expressão de fator tecidual. Após a resolução da infecção, a inflamação subclínica, conhecida como "síndrome pós-COVID", pode manter a liberação de citocinas pró-inflamatórias, perpetuando o estado pró-trombótico. Estudos de imagem mostram que a disfunção endotelial, com aumento de fator de von Willebrand (vWF), persiste por até 6 meses em alguns pacientes, contribuindo para a formação de trombos.

A hipóxia crônica e a imobilidade, comuns em pacientes com sequelas pulmonares ou fadiga pós-COVID, também aumentam o risco de estase venosa. Além disso, a ativação plaquetária e a formação de microtromboses, observadas em autópsias de pacientes com COVID-19, podem persistir, predispondo a eventos macrovasculares. Um estudo de 2022 identificou níveis elevados de micropartículas derivadas de plaquetas em pacientes pós-COVID-19, correlacionados com maior risco de TEV.

Fatores de Risco

Os fatores de risco para TEV pós-COVID-19 incluem gravidade da infecção inicial, comorbidades e marcadores laboratoriais. Pacientes internados, especialmente em UTI, apresentam maior risco devido à exposição prolongada a fatores como ventilação mecânica e imobilidade. Comorbidades como obesidade, diabetes, câncer e história prévia de TEV elevam o risco em até 3 vezes, segundo uma meta-análise de 2023. Idade avançada (>65 anos) e sexo masculino também estão associados a maior incidência.

Marcadores como D-dímero elevado na alta hospitalar são preditores robustos. Um estudo brasileiro com 300 pacientes pós-COVID-19 mostrou que D-dímero >1000 ng/mL na alta aumentava o risco de TEV em 4 vezes nos 3 meses seguintes. Outros marcadores, como proteína C-reativa (PCR) elevada e trombocitopenia persistente, também foram associados a maior probabilidade de trombose.

Estratégias de Manejo

O manejo do risco de TEV pós-COVID-19 envolve estratificação de risco e profilaxia anticoagulante em pacientes selecionados. Diretrizes da Sociedade Americana de Hematologia (ASH) recomendam profilaxia estendida com heparina de baixo peso molecular (HBPM) ou anticoagulantes orais diretos (DOACs), como rivaroxabana ou apixabana, por 2-6 semanas após a alta em pacientes com alto risco (D-dímero elevado, internação em UTI, comorbidades). O estudo MICHELLE, conduzido no Brasil, demonstrou que rivaroxabana 10 mg/dia por 35 dias pós-alta reduziu eventos tromboembólicos em 67% em pacientes com escore IMPROVE ≥4, sem aumento significativo de sangramento.

Para pacientes ambulatoriais com COVID-19 leve, a profilaxia não é recomendada rotineiramente, mas a vigilância clínica é essencial. Sintomas como dispneia persistente ou edema de membros inferiores devem levar à investigação com ultrassom Doppler ou tomografia de angiografia pulmonar. O D-dímero, embora inespecífico, é útil para triagem, com valores normais apresentando alto valor preditivo negativo.

Desafios no Contexto Brasileiro

No Brasil, o manejo do TEV pós-COVID-19 enfrenta barreiras logísticas e econômicas. O acesso a DOACs é limitado pelo custo elevado, não coberto pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para profilaxia estendida, forçando a dependência de HBPM ou varfarina, que requer monitoramento. A sobrecarga dos serviços de saúde, agravada pela pandemia, dificulta o acompanhamento pós-alta, com apenas 50% dos pacientes recebendo avaliação em 30 dias, segundo estudo em hospitais públicos de São Paulo. Além disso, a baixa alfabetização em saúde em populações vulneráveis compromete a adesão à profilaxia, com 30% dos pacientes relatando interrupção do tratamento por falta de orientação.

Perspectivas Futuras

As perspectivas futuras incluem o desenvolvimento de biomarcadores mais específicos, como microRNAs ou níveis de vWF, para identificar pacientes com risco persistente de TEV. A inteligência artificial (IA) pode aprimorar a estratificação de risco, integrando dados clínicos e laboratoriais. Um estudo piloto no Brasil alcançou 90% de acurácia na previsão de TEV pós-COVID-19 usando IA. A ampliação do acesso a DOACs no SUS e a implementação de programas de telemedicina para acompanhamento pós-alta também são prioridades. Além disso, ensaios clínicos em andamento estão avaliando a duração ideal da profilaxia estendida e o papel de novos anticoagulantes, como inibidores do fator XI.

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O risco de TEV pós-COVID-19 é significativo, especialmente nos primeiros 3 meses após a infecção, impulsionado por inflamação residual e disfunção endotelial. Pacientes com infecção grave, comorbidades ou D-dímero elevado requerem vigilância e, em alguns casos, profilaxia estendida com HBPM ou DOACs. No Brasil, barreiras como custo, acesso e acompanhamento limitam o manejo eficaz. Avanços em biomarcadores, IA e políticas públicas podem otimizar a prevenção e o tratamento, reduzindo a carga de complicações tromboembólicas e melhorando os desfechos para pacientes pós-COVID-19.


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